Numa postagem anterior, “Terapia de Regressão Vivencial”, explanei sobre alguns aspectos desta técnica de psicoterapia, exemplificando com um caso real. Na presente postagem, vou avançar um pouco mais sobre este assunto.
Uma questão que, por vezes, preocupa pessoas interessadas na Terapia de Regressão Vivencial, é se os acontecimentos vividos durante uma sessão de regressão são reais ou fantasias. Para responder a esta questão, são importantes alguns esclarecimentos prévios sobre como funciona nossa memória.
Não recordamos os fatos vividos da mesma forma como um computador recupera dados registrados em seu disco rígido (HD). Porém, “a neurociência demonstra que o encéfalo1 não armazena propriamente registros factuais, mas sim traços de informações que serão usados para reconstruir as memórias, nem sempre representando um quadro fiel ao que foi vivenciado no passado. Para executar tal processo, diferentes partes do encéfalo (...) codificam, armazenam e recuperam as informações que serão usadas para criar memórias. Por conseguinte, sempre que um evento traumático ou emocional é recuperado, ele pode ser submetido a uma mudança cognitiva e emocional.” (Peres et al., 2005).2
Isto significa que, quando memorizamos um fato, este não fica guardado todo num único local em nosso encéfalo, mas aspectos diferentes dele ficarão gravados em diferentes locais do encéfalo. Por exemplo, imaginemos que estamos vendo pela primeira vez uma arara. Ao olharmos para ela, sua imagem é recebida e fragmentada pelas milhões de células da nossa retina (chamadas de fotorreceptoras, ou seja, receptoras de estímulos luminosos). Um grupo destas células capta as cores - algumas captam o vermelho, outras captam o verde e outras o azul, num sistema similar ao usado pelos aparelhos de televisão, embora o nosso seja muito mais sofisticado e preciso. Um outro grupo de fotoreceptoras capta os tons de cinza, um terceiro grupo capta a distância da imagem e sua profundidade, e um quarto grupo capta a intensidade da luz que vem da imagem. Cada aspecto da imagem da arara assim fragmentada é processada e armazenada em diferentes partes do encéfalo. Então, uma outra parte do encéfalo junta todos estes aspectos da imagem, formando a síntese que representa para nós a imagem da arara.
Se, entretanto, quando estamos vendo a arara experimentarmos uma forte emoção, por exemplo, soubermos que alguém de quem gostamos muito morreu, a imagem-síntese da ave que nosso encéfalo construirá poderá ser diferente daquela formada numa situação emocionalmente neutra para nós. Além disto, poderá ficar gravada em nossa memória com uma carga emocional de tristeza. Porém, vendo outras araras posteriormente, em situações mais agradáveis, esta imagem-síntese poderá se modificar, ficando mais de acordo com a arara real, assim como a tristeza associada poderá ir se dissipando, dando lugar a uma carga emocional neutra ou até positiva. Ou seja, esta imagem-síntese que formamos é dinâmica e, a cada vez que é evocada, pode ser modificada, por influência de novas experiências e emoções, como mostra o exemplo, e mesmo por algumas condições orgânicas da pessoa no momento.
Por outro lado, observamos na prática psicoterápica que, quando o paciente revive um fato, principalmente quando ocorrido num passado remoto, algumas vezes o reconstrói misturando-o com elementos de sua experiência atual, como filmes ou livros que leu, estórias que ouviu, paisagens e edificações que conheceu. Daí pode surgir a dúvida: não será apenas uma recordação de algo que leu, ouviu ou viu em algum lugar? Uma falsa memória? É uma dúvida razoável.
Uma resposta a esta dúvida é que, ao reconstruímos nossas memórias, elas são influenciadas por algumas das nossas condições orgânicas e emocionais no instante em que as evocamos, mas também pelo repertório de conhecimentos, habilidades e experiências que adquirimos até o momento. Assim, algo que vivemos aos seis anos de idade e que nos deixou muito felizes, aos sete anos recordaremos de uma maneira e aos vinte e sete de maneira diversa.
Uma outra resposta pode ser dada por esta reflexão: por que aquele conteúdo emergiu exatamente naquele momento, ao revivê-lo em estado alterado de consciência (EAC)? Não é por acaso. Durante a sessão psicoterapêutica, o que emerge do inconsciente tem um significado específico relacionado ao tema que está sendo tratado, como a prática clínica tem mostrado inúmeras vezes.
Tendo em vista as considerações acima, algo que é muito importante para o processo de reestruturação de memórias traumáticas por meio da Terapia de Regressão Vivencial é se essas memórias emerjam espontaneamente do inconsciente do paciente, sem que seu conteúdo tenha sido induzido pelo psicoterapeuta. O psicoterapeuta conduz o processo de regressão, não seu conteúdo. Por exemplo, ao tratar de um tema, como a “dificuldade de tomar decisões que envolvam laços afetivos”, o psicoterapeuta auxilia o paciente a focar o tema antes e durante a indução ao estado alterado de consciência necessário para a regressão. Contudo, não o induz a reviver qualquer fato específico. Orienta-o apenas a reviver um fato traumático que tenha dado origem ou reforçado a “programação negativa” que está lhe causando dificuldades na sua vida pessoal ou profissional.
Se o fato traumático revivido pelo paciente durante a sessão de regressão é espontâneo, significativa e emocionalmente real para ele, a elaboração deste fato, auxiliada pelo psicoterapeuta, torna-se um importante fator no processo de superação do trauma e, conseqüentemente, na solução das dificuldades decorrentes. Isto é o que tem mostrado não só a minha prática psicoterapêutica, mas igualmente a prática de muitos outros psicólogos e psiquiatras que atuam nesta abordagem psicoterapêutica.
Numa próxima postagem, vou clarear melhor o que expus acima, por meio de exemplos reais de reestruturação de memórias traumáticas.
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1 Encéfalo: parte do sistema nervoso central, contida no crânio, que compreende o cérebro, o cerebelo e a medula alongada.
2 Peres, J.F.P., Mercante, J.P.P., Nasello, A.G. Promovendo resiliência em vítimas de trauma psicológico. Rev Psiquiatr RS. 2005;27(2):131-138.
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