Na parábola do credor incompassivo (Mt 18:23-35), Jesus exemplifica ao povo o trecho da oração do “Pão Nosso” (Mt 7:9-13) que ele ensinou aos discípulos - “perdoai as nossas ofensas, assim como perdoamos aos que nos ofenderam” - e lhes explicou em detalhes (Mt 7:14-15): “Porque, se perdoares aos homens as suas ofensas, vosso Pai celeste também vos perdoará. Mas, se não perdoardes aos homens, tampouco vosso Pai vos perdoará”.
Mas, por que “se perdoares aos homens as suas ofensas, vosso Pai celeste também vos perdoará”? A fé raciocinada leva-me a não aceitar uma afirmação somente porque veio de (ou é atribuída a) uma alta autoridade moral e espiritual. O fato de prover de uma tal autoridade, leva-me a considerar tal afirmativa com um grande respeito, mas não a aceitá-la automaticamente caso não a entenda adequadamente, isto é, caso ainda não faça sentido diante da minha experiência de vida, meus conhecimentos e minha razão.
Uma primeira reflexão sobre esta afirmativa é sobre o Pai celeste. Penso que ao transmitir sua mensagem ao povo da época (e talvez mesmo para a maioria das pessoas ainda hoje), para que o compreendessem melhor, Jesus utilizou uma imagem antropomorfa de Deus, a imagem de um pai. É claro que Deus, como abrange tudo, pode também ser visto como um pai, falando esta imagem mais de perto ao sentimento popular (e também para mim). Porém, na resposta à 1a questão feita por Kardec (“O que é Deus?”) aos espíritos que consultou para escrever o Livro dos Espíritos, estes lhes disseram que “Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas”. Esta resposta faz um sentido profundo para minha razão, experiência de vida e conhecimentos.
Portanto, tenho que considerar Deus não como uma figura humana que irá me castigar ou perdoar, mas como o Princípio de tudo que existe, existiu e existirá, o que inclui as leis do Universo em todos seus níveis e dimensões. Creio, também, e isto faz muito sentido para mim, que Deus é infinitamente bom, que ama a Sua criação infinitamente. Ligando isto à Sua onisciência (Deus conhece totalmente nossas fragilidades, qualidades, intenções e potenciais), concluo que não tem sentido (num nível mais profundo, não antropomórfico) falar do perdão de Deus. Isto porque só perdoa quem se sentiu ofendido e é inimaginável que qualquer coisa que façamos possa ofender a Deus, “a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas”.
Então, se não é Deus que nos perdoa, quem ou o que nos perdoa? Penso que uma resposta é: nós mesmos nos perdoamos ou condenamos, ou seja, nossa consciência nos condena ou perdoa. Isto porque, faz todo sentido para mim (e por esta razão creio nele) o ensinamento bíblico de que somos feitos à imagem e semelhança de Deus e que, por esta razão, temos gravado em nosso espírito a Lei Divina que nos impulsiona a evoluirmos em direção ao Bem Supremo, ao Amor Universal. Comparando nossos pensamentos e atos a este Padrão Divino em nós, vem-nos a autocondenação e, após a compreensão e a reparação, o autoperdão. E como sabemos que nossa consciência realmente nos perdoou? Através da paz interior, da consciência tranqüila que nos indica estarmos em consonância com a Lei Divina em nós.
Mas, porque Jesus diz que temos que perdoar ao próximo para sermos perdoados? Penso que a rigidez em perdoar ao próximo volta-se contra nós mesmos, tirando-nos a paz interior, afastando-nos, assim, de Deus. A raiva, a mágoa, mantêm-nos presos àquele que acreditamos tenha nos ofendido. Realimentando a raiva, revivemos constantemente a situação na qual cremos termos sido ofendidos e isto reaviva ainda mais esta raiva, num círculo vicioso que nos intoxica mais e mais. Neste sentido, vale lembrar a frase atribuída à Shakespeare - “guardar ressentimento é como tomar veneno e esperar que a outra pessoa morra”.
A raiva se mantém caso a realimentemos, porque sua tendência natural, como de outras emoções, é se dissipar com o tempo. Nós é que a mantemos viva, como nos lembra o caso de Felipe II (382 - 336 a.C.), rei da Macedônia, pai de Alexandre Magno. Felipe, por várias razões, ficou com muita raiva dos gregos e queria se vingar deles. Cônscio, talvez, de que sua raiva, deixada por si só, dissiparia-se com o tempo, chamou um dos seus servos de confiança e lhe ordenou: “lembre-me, todos os dias, o ódio que tenho dos gregos”).
Irritamo-nos ou nos magoamos quando cremos que fomos ofendidos. Portanto, se alguém nos diz ou nos faz algo, mas isto não nos toca, então não nos encolerizamos.
A raiva faz parte de um sistema de sobrevivência que herdamos de nosso passado mais primitivo e, alguns estímulos instintivamente podem nos levar à esta emoção. Mas, o impacto destes estímulos sobre nós pode ser minimizado ou intensificado por nossas crenças sobre nós mesmos, sobre as pessoas em geral e sobre o mundo. Por exemplo, se acreditamos que somos superiores (em termos de status intelectual, moral ou até espiritual) ao nosso “oponente” e que nossa “superioridade” implica que este deve nos tratar com deferência, e esta pessoa não nos trata desta forma, então nos encolerizamos. Em outras palavras, se o que o outro nos faz ou diz conflita com nossa vaidade, perdemos o equilíbrio.
Um outro exemplo: se julgamos (ou acreditamos) que a outra pessoa (ou pessoas) nos fala ou faz é muito injusto, que não deveríamos ser tratados desta forma (porque achamos que não provocamos tal comportamento, ou que o mesmo é cruel, irracional, que a pessoa só quer nos humilhar etc.) e, além disto, acreditamos também, p.ex., que não devemos “levar desaforo para casa”, então, provavelmente iremos nos encolerizar e manifestar esta cólera com palavras ou atos agressivos. Caso não possamos “dar vazão”, no momento, a esta cólera (porque achamos que o “oponente” é mais forte ou poderoso, ou forças maiores na situação nos impedem), ficamos magoados, alimentando, muitas vezes, pensamentos de vingança, atitude sobre a qual nos adverte a frase atribuída a Shakespeare.
Parece, então, que quando pensamos ter sido ofendidos, esta é a nossa percepção da situação. Se nossas crenças de como devemos ser tratados forem muito rígidas e nossa vaidade suficientemente grande, então iremos nos encolerizar e alimentar ressentimentos com freqüência, envenenando-nos e aos nossos relacionamentos.
Por vezes, nossos próximos mais próximos (na família, no trabalho) podem ser a fonte mais freqüente das pretensas “ofensas” que recebemos. Penso que eles funcionam para nós como os pequenos seixos que Demóstenes (384-322 a.C.) colocava na boca para dificultar mais os treinos que fazia, lendo em voz alta ou discursando, como forma radical para superar sua má dicção e sua gagueira. Tornando mais difícil para si mesmo o que já era difícil (falar de forma fluente, com clara dicção), quando conseguiu falar de forma razoavelmente fluente e clara com os seixos na boca, ao tira-los sua fluência e dicção ficaram ótimas e ele se tornou um dos maiores oradores da História da antiga Grécia. Assim, estes próximos que achamos que nos atormentam, são, de fato, nossos aliados, impulsionando a nossa evolução.
Veja, também, O Perdão que Liberta, de 10/12/2010.
Veja, também, O Perdão que Liberta, de 10/12/2010.
Só não concordei com a parte de que Deus é Pai...creio eu, na humildade do meu ser, que ele é uma mãe :)
ResponderExcluirbjs.
Oi Fabi,
ResponderExcluirTambém acho: pai e mãe. A unilateralidade de "pai" tem a ver com a cultura patriarcal da época. Contudo, essa cultura talvez tenha tido uma função de desenvolver alguns aspectos na sociedade da época e talvez esta função esteja perdendo o significado hoje em dia.
Abs, Leonel