"O Espiritismo e a ciência se complementam um pelo outro; a ciência, sem o Espiritismo, se acha impossibilitada de explicar certos fenômenos, unicamente pelas leis da matéria; o Espiritismo sem a ciência, ficaria sem apoio e exame." (Kardec, Allan. A Gênese: Os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo; Capítulo I - Caracteres da Revelação Espírita. São Paulo: LAKE, 1999).
Em "Obras Póstumas" (cap. Constituição do Espiritismo - Exposição de Motivos, item II - Dos Cismas. São Paulo: LAKE, 1999), Kardec escreve referindo-se à Doutrina Espírita: "Apoiada, exclusivamente, em leis naturais, não pode ser mais variável que estas leis, mas se uma nova lei for descoberta, deve modificar-se para harmonizar-se com esta; não deve cerrar a porta a nenhum progresso sob pena de suicidar-se. Assimilando todas as idéias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas e metafísicas, nunca será posto à margem e é esta uma das principais garantias da sua perpetuidade."
Uma vez, pediram minha opinião sobre a razão destas recomendações de Kardec serem tão pouco seguidas pelo movimento espírita. Argumentei que, desde a época de Kardec, muitos grandes espíritas têm contribuído com pesquisas e idéias que aprofundam as revelações originais da Codificação. E que, no plano espiritual, as obras do Espírito André Luiz, sob a psicografia de Chico Xavier, iluminaram e desenvolveram muitos aspectos da Doutrina Espírita. Mas que sentia também a falta de um esforço sistemático para, a partir da análise destas várias contribuições, compatibilizá-las, caso realmente compatíveis, e integrá-las à Doutrina. E que, na minha opinião, várias seriam as razões disto não ocorrer.
Acho que uma destas razões tem a ver com nossa forte herança católica, com o seu dogmatismo autoritário. Esta herança parece estar profundamente (mas não irremediavelmente) arraigada na mentalidade brasileira, dificultando o raciocínio crítico, necessário para a utilização eficaz do "crivo da razão" preconizado por Kardec. Veja-se, nesse sentido, "CRIVOS DA RAZÃO - Parte 5: A Falácia do Apelo à Autoridade", postada neste blog em 10/01/2011.
Por outro lado, esta mentalidade tem sido também alimentada pela sucessão histórica de governantes autoritários mais voltados para os interesses da elite sócio-econômica (como foi o caso de praticamente todos os presidentes da "república velha") do que para a educação do povo. Mais recentemente, na nossa história, dirigentes autoritários- paternalistas (os "pais do povo") continuaram esta tradição de maneira mais sutil. A figura paradigmática deste tipo de dirigente foi Getúlio Vargas, copiado atualmente em muitos aspectos.
Este autoritarismo paternalista tem um antecedente histórico relevante, D. João VI. O livro "1808", de Laurentino Gomes, retrata brilhantemente a personalidade deste rei e sua contribuição para a formação do Brasil -- acho sua leitura obrigatória para quem quer entender aspectos relevantes da nossa tradição cultural que perduram até hoje.
Este autoritarismo paternalista tem um antecedente histórico relevante, D. João VI. O livro "1808", de Laurentino Gomes, retrata brilhantemente a personalidade deste rei e sua contribuição para a formação do Brasil -- acho sua leitura obrigatória para quem quer entender aspectos relevantes da nossa tradição cultural que perduram até hoje.
O autoritarismo intelectual típico da nossa cultura está em consonância com o baixo nível educacional de muitas das nossas instituições públicas e privadas de ensino (felizmente com notáveis excessões) e, consequentemente (mas não no sentido de consequência logicamente obrigatória), da grande maioria de nosso povo.
Sérgio Buarque de Holanda (um dos nossos historiadores mais respeitados) cunhou o termo "homem cordial", ao se referir a uma das características marcantes do homem (e mulher, é claro) brasileiro. Por cordial, este historiador não se refere apenas à hospitalidade e amabilidade (também relevantes, a meu ver, mesmo que pareçam estar desaparecendo nos grandes centros), mas ao "compadrio", a tendência de resolver as coisas pelos relacionamentos, "panelinhas", em detrimento da justiça, do mérito e da verdade. Isto se vê na política, nas universidades (principalmente nas públicas, mas não apenas nelas) e nas empresas. Nestas, esta "cordialidade" (no sentido do termo do Sérgio Buarque) é um pouco amenizada, em razão da racionalidade imposta pela concorrência. Entretanto, mesmo esta concorrência é também minimizada pelo "compadrio" entre empresas -- oligopólios e os tão comuns "acordos" de preços (de mercado e de participação em concorrências públicas, entre outras coisas).
Numa outra perspectiva desta questão, a mentalidade da grande maioria do nosso povo parece não ter atingido ainda a Era Moderna. Em Filosofia e História, a modernidade está ligada ao relativo predomínio da razão que teve seu marco no Iluminismo, do qual Descartes foi uma das figuras paradigmáticas e precursoras na Filosofia (que teve em Kant um dos grandes expoentes do racionalismo crítico, do qual Karl Popper parece-me um relevante e inovador representante) e na Ciência (juntamente com Galileu, entre outros), ao lado de Voltaire, Montesquieu, Thomas Jefferson e vários outros. O passar tudo pelo crivo da razão é intrínseco ao pensamento iluminista, parte relevante da bagagem educacional e dos valores de Kardec. Porém, a maioria de nós ainda mantem a mentalidade pré-iluminista, pré-moderna.
As considerações acima fazem parte, a meu ver, do "pano de fundo" que ajuda a explicar porque a recomendação kardequiana do crivo da razão ser tão alardeado, mas tão pouco praticado entre nós. Daí o relativo fechamento intelectual de vários dos espíritas atuais. Neste sentido, um dos personagens do livro "Nos Domínios da Mediunidade" (Cap. 5 – Assimilação de Correntes Mentais), Aulus, fala da preguiça mental que muitos temos em raciocinar por conta própria (os negritos são meus):
"Áulus, o orientador espiritual de André Luiz e de seu companheiro Hilário, explica a ambos como ocorre a assimilação das correntes mentais pelos encarnados. Hilário, intrigado com a explanação, pondera: 'Não será, porém, tão fácil estabelecer a diferença entre a criação mental que nos pertence daquela que se nos incorpora à cabeça'. Áulus, responde, instruindo:
– Sua afirmativa carece de base – exclamou o Assistente. – Qualquer pessoa que saiba manejar a própria atenção observará a mudança, de vez que o nosso pensamento vibra em certo grau de freqüência, a concretizar-se em nossa maneira especial de expressão, no círculo dos hábitos e dos pontos de vista, dos modos e do estilo que nos são peculiares.
E, bem-humorado, comentou:
– Em assuntos dessa ordem, é imprescindível muito cuidado no julgar, porque, enquanto afinamos o critério pela craveira terrena, possuímos uma vida mental quase sempre parasitária, de vez que ocultamos a onda de pensamento que nos é própria, para refletir e agir com os preconceitos consagrados ou com a pragmática dos costumes preestabelecidos, que são cristalizações mentais no tempo, ou com as modas do dia e as opiniões dos afeiçoados que constituem fácil acomodação com o menor esforço. Basta, no entanto, nos afeiçoemos aos exercícios da meditação, ao estudo edificante e ao hábito de discernir para compreendermos onde se nos situa a faixa de pensamento, identificando com nitidez as correntes espirituais que passamos a assimilar'."
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