terça-feira, 14 de junho de 2011

O Que É Ciência - parte 1

Frequentemente, ouço ou leio pessoas de várias religiões (inclusive espíritas) referindo-se à Ciência e ao conhecimento científico, ou usando supostas descobertas cientificas para embasar seus argumentos. Na grande maioria das vezes, de maneira equivocada.
Esta postagem é uma modesta tentativa para esclarecer melhor a leitores deste blog o que é Ciência. Para isto, fiz um breve resumo da visão  daquele que talvez seja o principal filósofo da Ciência do século XX, Karl Popper, tendo por fontes a Stanford Encyclopedia of Philosophy – http://plato.stanford.edu/entries/popper/#Life – e a Encyclopedia Britannica – http://www.britannica.com/bps/search?query=Karl+Popper –, além da ajuda da Wikipédia em relação ao sonho do cientista August Kekulé.
Karl Popper (1902 – 1994) é geralmente visto como um dos maiores filósofos da ciência do século 20. Ele se declarava um “racionalista crítico”, um empenhado oponente de todas as formas de ceticismo, convencionalismo e relativismo em ciência e nos assuntos humanos em geral, um defensor comprometido e firme da “Sociedade Aberta” e um implacável crítico do totalitarismo em todas as suas formas. Uma das características mais marcantes do pensamento de Popper é o escopo de sua influencia intelectual. No mundo dos cientistas da alta tecnologia e ultra-especialização, a filosofia é praticamente ignorada. Por isto, é sem precedentes o interesse deles por teses filosóficas, como é o caso de Popper, testemunhando, assim, o impacto do enorme benefício prático que sua obra filosófica tem tido no trabalho científico.
Para Popper, o problema central na filosofia da ciência é o da demarcação, isto é, distinguir entre ciência e o que ele chama de “não-ciência”.
De acordo com ele, o crescimento do conhecimento humano ocorre a partir de nossos problemas e de nossas tentativas de os resolver. Estas tentativas, quando envolvem a formulação de teorias que visam explicar fenômenos que as teorias atuais não explicam, podem levar a uma ampliação do conhecimento existente. Para formular estas teorias, o cientista tem que levar sua imaginação a dar um salto de criatividade. Por esta razão, Popper coloca uma ênfase especial no papel desempenhado pela imaginação criativa independente na formulação de uma teoria. Enfatiza que não há um único caminho, um único método – como, p. ex., a indução (clique e veja sobre o método da indução na postagem deste blog de 27/10/2010, "Crivos da Razão - parte 2: Raciocínio Indutivo"), que funcione como rota para a formulação de uma teoria científica. Einstein endossa esta opinião quando afirma que “Não há um caminho lógico que leva às leis universais mais elevadas da ciência”.
Na visão de Popper, problemas são centrais e prioritários na ciência, e é isto que o leva a caracterizar o cientista como um “solucionador de problemas”. Como diz que o cientista começa com problemas, ao invés de observações dos fatos ou “dados brutos”, Popper argumenta que a única técnica lógica que é parte intrínseca do método científico é o teste dedutivo (clique e veja sobre dedução na postagem deste blog de 22/09/2010, "Crivos da Razão - parte 1: Raciocínio Dedutivo") de teorias, as quais não são, necessariamente, resultado de raciocínio lógico. Ou seja, uma teoria científica pode ser formulada com base em inspirações resultantes de associações de idéias a partir das mais diversas situações (por exemplo, quem assiste ao seriado House, que conta com consultores científicos para garantir o rigor científico da série, está familiarizado com tais inspirações e o teste dedutivo das teorias). Mas uma pessoa não precisa ser um House para ter essas inspirações súbitas. Muitos as experimentam várias vezes em suas vidas.
Sonhos também podem ser fontes de inspirações, como é o clássico caso da descoberta da estrutura da molécula do benzeno, contada abaixo.
           Já na metade do século XIX, vários cientistas haviam proposto diferentes fórmulas estruturais para essa molécula. Porém nenhuma dessas proposições conseguia explicar as reações apresentadas pelo benzeno. Foi então que Friedrich August Kekulé von Stradonitz, mais conhecido por apenas Kekulé (1829 - 1896), em 1865, depois de um sonho, propôs a idéia do anel hexagonal, completada no ano seguinte com a hipótese da existência de um par de estruturas em equilíbrio, com a alternância de ligações duplas.
O sonho de Kekulé:
Eu estava sentado à mesa a escrever o meu compêndio, mas o trabalho não rendia; os meus pensamentos estavam noutro sítio. Virei a cadeira para a lareira e comecei a dormitar. Outra vez começaram os átomos às cambalhotas em frente dos meus olhos. Desta vez os grupos mais pequenos mantinham-se modestamente à distância. A minha visão mental, aguçada por repetidas visões desta espécie, podia distinguir agora estruturas maiores com variadas conformações; longas filas, por vezes alinhadas e muito juntas; todas torcendo-se e voltando-se em movimentos serpenteantes. Mas olha! O que é aquilo? Um das serpentes tinha filado a própria cauda e a forma que fazia rodopiava troscistamente diante dos meus olhos. Como se se tivesse produzido um relâmpago, acordei;… passei o resto da noite a verificar as consequências da hipótese. Aprendamos a sonhar, senhores, pois então talvez nos apercebamos da verdade." – August Kekulé, 1865.
No processo dedutivo, conclusões são deduzidas de uma hipótese tentativa (num exemplo do dia-a-dia, se a direção do meu carro está trepidando, minha "hipótese tentativa" é de que as rodas dianteiras estão desalinhadas e isto está provocando a trepidação; isto é empiricamente testável). Estas conclusões são, então, comparadas entre si (para verificar se são ou não contraditórias) e com outras assertivas científicas relevantes já bem testadas empiricamente, para se determinar se elas refutam (Popper diz falsificam) a hipótese ou a corroboram. Só então elas são testadas empiricamente. O teste empírico vai, então falsificá-las (refutá-las) ou fortalece-las. Mas não prová-las. Para Popper, uma teoria científica não é "comprovada" em definitivo, pois o conhecimento científico é dinâmico, sempre em evolução. Assim, nenhuma teoria científica é a "palavra final" sobre qualquer coisa, por mais que tenha sido corroborada pelos fatos empíricos. Ela pode ser apenas a "melhor palavra" sobre o assunto, enquanto não surgir uma teoria com poder preditivo ainda melhor. 


No exemplo da trepidação da direção, significa fazer o alinhamento num mecânico especializado - se o problema desaparecer, então minha hipótese inicial foi corroborada pelo teste empírico. Caso o problema continue, posso formular, por exemplo, duas explicações para isto: (1) minha hipótese tentativa está correta, mas o mecânico errou, não fez um bom serviço - para testar isso, irei a um mecânico mais confiável e farei novamente o realinhamento - se o problema continuar, então é mais provável que minha hipótese esteja errada; (2) ou minha hipótese está errada, pois o teste empírico a falsificou (refutou). No dia-a-dia, por vezes optamos de cara pela 2a. explicação. Contudo, em termos científicos, a 1a. explicação e sua linha de ação é mais recomendável, pois qualquer teste empírico está sujeito a erros. Por isso que devem ser reproduzidos, de preferência por experimentadores diferentes e independentes um do outro.



Um comentário:

  1. Prezado Leonel,

    A idéia de que existe um equilíbrio entre a evidência científica e sua interpretação, reforça para mim o comprometimento com a verdade que todos nós temos. Então, cautela em seguir com uma idéia e coragem para aceitar que as interpretações podem ser "transformadas" à medida que avançamos.

    Como sempre seus textos são um convite à reflexão. Obrigada!

    Att, Poliana

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